Coragem hoje, abraços amanhã

Os anos passados em clandestinidade na luta contra o fascismo levaram-na a chamar-se Maria Helena, Marília, Benvinda. Hoje, é Conceição Matos, reconhecida resistente anti-fascista, continuando a ser uma orgulhosa militante do Partido Comunista Português. Os anos de luta e as prisões na PIDE deixaram-lhe memórias que, diz, “tenho o dever de contar”.

À medida que o tempo passa o risco de se perder a memória histórica aumenta. No caso de Portugal, chega-se a branquear o regime fascista. Como caracterizas a ditadura?

Há até quem negue ter havido fascismo em Portugal. No entanto, os 48 anos de ditadura significaram miséria extrema, carência alimentar, na saúde, na educação, brutal exploração, prisões, torturas, crimes.

Só no campo de concentração do Tarrafal foram assassinados 32 antifascistas. As acções reivindicativas nas fábricas, campos e escolas eram reprimidas, muitas vezes com prisões. As mulheres eram cidadãs de segunda. O não esquecimento do fascismo e das transformações que o 25 de Abril trouxe é uma forma de lutar pela liberdade.

Estiveste presa pela PIDE duas vezes, pela tua actividade contra o regime. A primeira vez um ano meio, entre 1965 e 1966. Como foi?

Foi horrível. Só quem passou é que sabe. Cheguei a uma altura em que achava que ia mesmo morrer. Mas o Partido dava-me força. Fizeram-me a tortura do sono, passava noites sem dormir. Às tantas já se tem alucinações. Mas nunca falei. Deram-me espancamentos brutais. Mas o que me custou mais não foram os espancamentos, foram as torturas morais. Despiram-me duas vezes. Da primeira vez, obrigaram-me a fazer as necessidades no chão e que eram limpas com a minha roupa. Disseram-me que dali só saía ou para a morgue ou para o Júlio de Matos. Da segunda vez ameaçaram que me iam despir completamente, e assim o fizeram. Depois, as PIDES empurraram-me para o pé de um grupo de dez homens. Gritei: são uns monstros! Um dia o povo há-de se vingar! Fui brutalmente espancada por uma PIDE. Depois chegou um fotógrafo para me fazer a tortura do flash. Sentaram-me numa cadeira, a darem-me murros no queixo para olhar directamente para o flash. Isto durou horas e horas. Disse-lhes: não tenho nada para dizer à polícia. Lá dentro aprendi a comunicar com os outros presos. Ouvia-os a bater nas paredes, tipo morse. Fui ouvindo e decifrei o código que usavam. Às tantas consegui comunicar com eles. Perguntaram-me: “falaste?”. Eu disse que não. Responderam-me: “amiga, coragem hoje e abraços amanhã”.

E a segunda prisão?

Foi em 1968. Estive presa dois meses e meio. Quando cheguei a uma das salas de tortura da PIDE, disse: foi aqui que me deram cabo da saúde. O inspector Tinoco, que me tinha torturado na primeira prisão, respondeu-me: “tenho muita honra em ter-lhe dado cabo da saúde. Tenho muita pena de não lhe ter dado cabo da vida”.

Que formas de luta utilizavas na clandestinidade para combater o fascismo?

Trabalho de agitação, distribuição de Avantes, escrevia materiais do Partido na máquina de escrever, cuidava da casa e vigiava-a. Tinha que fazer parecer que éramos [Conceição e o companheiro, Domingos Abrantes] pessoas com vidas normais. Tive vários pseudónimos, fui Maria Helena, fui Marília, fui Benvinda.

Onde estavas no 25 de Abril? Como o viveste?

Nesse dia estava em Paris, onde eu e o Domingos vivíamos desde 6 de Fevereiro de 1974, pois o Partido tinha-nos destacado para tarefas exteriores. Foi na rua, no encontro com um camarada, que soube do golpe militar. O Domingos estava em Bruxelas. Eu sabia pouco do que se estava a passar. Quando vi na TV francesa a Junta da Salvação Nacional com o Spínola e a seguir canções do Zeca Afonso fiquei confusa. Mas, à medida que ia recebendo mais informação, a alegria e a confiança avançaram. Especialmente no dia que libertaram os presos. Foi um momento emocionante e inesquecível.

Que mensagem queres deixar aos jovens nestes 42 anos do 25 de Abril?

Uma mensagem de confiança de que por muito difícil que seja o caminho, mais tarde ou mais cedo as esperanças que Abril abriu serão realizadas. Que os nobres ideais do socialismo e do comunismo triunfarão.

Mas esse futuro não cairá do céu. Constrói-se com a luta constante. Confio que os jovens comunistas de hoje e amanhã serão como sempre foram construtores empenhados do futuro.

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